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Mem
órias em Fragmentos | Luiz Antônio Costa 

Do terceiro andar, sentado na varanda do prédio, ele observa o movimento da avenida. O trânsito é intenso. Buzinas soam como uma trilha caótica que nunca para. Motociclistas costuram entre as faixas, ambulâncias cortam o trânsito com sirenes urgentes, e pedestres atravessam correndo antes que o sinal feche.

No sinaleiro, um artista de rua faz malabares, vestido de palhaço, com uma maquiagem pálida. Joga as bolas para o alto, tentando arrancar algumas moedas dos motoristas, que, na pressa, evitam o olhar, presos aos seus próprios mundos dentro dos carros.

Logo adiante, o vendedor de picolés empurra com esforço o carrinho de duas rodas, coberto por um guarda-sol colorido, já desbotado pelos anos. O sininho preso à lateral tilinta a cada solavanco, anunciando sua presença. As crianças que saem da escola próxima correm em direção a ele, gritando, rindo, provocando umas às outras numa algazarra alegre e descomplicada. Algumas disputam quem chega primeiro ao picolezeiro, outras seguem para a padaria da esquina, que mantém seu movimento incessante de clientes entrando e saindo com sacolas de pão e conversas apressadas.

De repente, um carro passa com o som no último volume. Pela rua ecoam os versos de Raul Seixas: "Prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo..."

A música o atinge como um convite à memória. Fecha os olhos por um instante e sorri. Aquela canção o carrega de volta a um tempo em que tinha pouco mais de vinte anos. Vêm à mente as tardes de domingo, os debates intermináveis com os amigos, a esperança de transformar o mundo com ideias e canções.

Mas antes de Raul, antes dos encontros políticos, das conversas sobre liberdade e futuro... ele volta ainda mais no tempo.

Lembra-se da própria infância. Da rua de chão batido, no bairro simples onde cresceu. Das tardes de calor, quando também corria atrás do picolezeiro com algumas poucas moedas suadas nas mãos. Recorda as brincadeiras de esconde-esconde, o futebol com bola de meia, as pipas coloridas cortando o céu e o cheiro da terra depois da chuva.

Mas não era só diversão. Eram também tempos difíceis. Os adultos falavam baixo quando o assunto era política. Na escola, aprendia a cantar o hino nacional com a mão no peito, sem entender muito bem o motivo. Os professores escolhiam com cuidado cada palavra dita em sala. Eram os anos da ditadura militar no país. Mesmo sendo apenas um garoto, ele percebia o medo suspenso no ar, a tensão nas conversas, os olhares desconfiados.

Ainda assim, a infância seguia seu curso, como sempre segue. Entre o medo e a inocência, entre o silêncio dos adultos e a euforia das crianças. Recorda-se das festas no bairro, do rádio tocando músicas da Jovem Guarda, dos domingos em família com arroz, feijão e frango ao molho.

Observando as crianças na rua agora, percebe como a cena se repete, com outras cores e outros sons. O vendedor de picolés desaparece na próxima esquina, seguido por um pequeno grupo de alunos ainda em clima de brincadeira. O artista de rua recolhe seus objetos e se afasta pela calçada.

Ele se levanta, vai até a cozinha, põe a água para ferver e prepara um café com calma. O aroma quente parece abrir ainda mais as portas da memória. Volta para a varanda, segura a xícara com as duas mãos e respira fundo. Sente o calor se espalhar pelo corpo, como se o trouxesse de volta àquele outro tempo.

Os fragmentos continuam chegando, como ondas sucessivas. Um atrás do outro. A infância, a juventude, os anos duros, os amores, as perdas, os acertos e os erros. O mundo lá fora segue acelerado, mas ali, naquele terceiro andar, o tempo parece querer andar mais devagar. Ele se permite. Fecha os olhos novamente e deixa as lembranças o levarem, sem pressa, como se folheasse, pela primeira vez, as páginas da própria história.

E, entre um gole e outro de café sabe que a partir dali virão outras lembranças, outros fragmentos...

Afinal, é disso que a vida é feita.


Cronica do meu livro, ainda inédito, Memórias em Fragmentos

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